POLÍTICA

Em 70 anos, CPIs do Senado investigaram de cartel do cimento a erros na pandemia

Em 19 de março de 1952, os jornais brasileiros noticiaram sem muito destaque a sanção de uma lei para regular a atuação das comissões parlamentares de inquérito no Congresso. Assinada pelo presidente Getúlio Vargas no dia anterior, a Lei 1.579 definiu regras para o funcionamento dos colegiados, ainda pouco conhecidos da população na época. A legislação deu poderes às CPIs para convocarem ministros de Estado e outras autoridades. Também tipificou como crime prestar falso testemunho ou atrapalhar o trabalho de investigação.
A lei regulamentou um artigo da Constituição de 1946, que marcou a redemocratização do país após o fim do Estado Novo. O artigo trouxe de volta ao texto constitucional a previsão de CPIs na Câmara e também no Senado. Os debates no Congresso durante a tramitação do projeto que deu origem à lei (apresentado pelo deputado Plínio Barreto, de São Paulo) mostravam otimismo dos parlamentares com o instrumento. “As comissões parlamentares de inquérito, conscientemente desempenhadas, podem representar um grande papel na vida política nacional em benefício do povo e da eficiência, e consequente valorização das atividades do Congresso”, dizia o parecer da Comissão de Justiça da Câmara ao projeto, aprovado há 70 anos, no início de março de 1952, e logo sancionado.
Poucos meses depois, a situação da indústria e do comércio de cimento no país se tornou alvo da primeira CPI dos senadores. O produto, considerado básico para o progresso nacional, costumava faltar no mercado. A investigação pretendia desvendar as razões da produção insuficiente, os critérios para distribuição de cotas do insumo aos estados e até as suspeitas de “câmbio negro” de cimento no território nacional. Proposta pelo senador Mozart Lago, do Distrito Federal (RJ), a comissão teve o senador Clodomir Cardoso (MA) na presidência.
Em seu parecer sobre o pedido de instalação da CPI, o senador Gomes de Oliveira (SC) considerou que a iniciativa era “das mais felizes”, mostram documentos conservados pelo Arquivo do Senado.
“O cimento constitui fator importantíssimo em nosso progresso material, e que pesa, sobremodo, no custo das construções. Ainda que já esteja sendo produzido entre nós em proporção apreciável, a sua insuficiência em nosso mercado tem dado margem aos rumores mais alarmantes sobre o preço por que é vendido e em câmbio negro. É preciso, portanto, conhecer as causas da sua insuficiência e do seu custo, para que se tomem providências adequadas ao desenvolvimento da sua produção e à coibição de abusos que, à sua sombra, se venham cometendo”, defendeu.
Durante a votação da resolução para criar a CPI, Mozart Lago relatou que vinha recebendo “longa correspondência” dos estados, pedindo providências. O senador leu a carta de um vereador de Niterói (RJ), que denunciava desvios. Apesar de grande produtor de cimento, o estado do Rio “se vê a braços com a falta deste produto pois aqui campeia escandalosamente o câmbio negro, com inevitáveis prejuízos para a economia do povo”, dizia a correspondência.
A falta do material era então um problema recorrente. Por causa da escassez, a distribuição era controlada pelo governo, e os preços, tabelados. Na imprensa, notícias sobre o “escândalo do cimento” relatavam venda do insumo no mercado ilegal pelo dobro do preço, importação irregular ou desvios com participação dos próprios funcionários que deveriam fiscalizar o setor.
Muitas vezes, os governos estaduais usavam força policial para garantir o controle da produção nas fábricas, acusadas de desviar carregamentos do produto para cambistas. Em janeiro de 1952, o jornal Correio da Manhã  noticiou uma dessas operações, levada a cabo pelo governo paulista. “Cercada pela polícia a fábrica de cimento”, dizia a manchete, relatando que as saídas da indústria seriam vigiadas e as estradas teriam barreiras para impedir a passagem de cargas ilegais.
As cotas de importação, definidas pelo poder público, eram consideradas insuficientes. “Não há dólar para cimento? Precisa haver. Cimento é mais importante do que Cadillac”, ironizou o mesmo jornal em um editorial, citando o carro de luxo importado pelos abonados brasileiros na época.
Em decorrência da CPI, o Senado e a Câmara dos Deputados aprovaram projetos de incentivo à indústria nacional de cimento. Em agosto de 1953, por exemplo, o Congresso autorizou o Poder Executivo a conceder “facilidades públicas” (como isenção de impostos) para a instalação de fábricas do produto. Ao fim daquela década, o país seria considerado autossuficiente na produção.
Última Hora
As discussões levantadas pela CPI do cimento ficaram restritas ao Parlamento, sem muita repercussão na mídia ou na sociedade. No ano seguinte, porém, outra investigação ganhou a capa dos jornais e abalou o governo Getúlio Vargas.
Instalada em 1953 na Câmara, a CPI do jornal Última Hora investigou suposto favorecimento governamental ao Grupo Wainer, do jornalista Samuel Wainer — proprietário do periódico e grande aliado de Getúlio. A denúncia era feita pelo jornalista Carlos Lacerda (por meio de seu jornal, Tribuna da Imprensa), crítico ferrenho do presidente e de Wainer. De acordo com Lacerda e políticos da UDN, o Banco do Brasil fazia repasses ilegais para o Grupo Wainer.
Um total de 27 testemunhas foram ouvidas, incluindo Wainer e Lacerda. Em novembro de 1953, as investigações chegaram ao fim. Descobriu-se que existiram irregularidades nas transações de crédito do Banco do Brasil, mas que isso havia favorecido a imprensa de uma forma geral, e não apenas o Grupo Wainer.
Ao longo de cinco meses, os depoimentos e os embates entre governistas e oposicionistas mobilizaram as atenções do país. Era um prenúncio do poder que essas comissões de inquérito poderiam ter.
A mais recente CPI instalada pelo Senado — a da Pandemia, encerrada em outubro do ano passado — é um exemplo desse alcance. Após seis meses de investigação sobre as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da covid-19, a CPI apontou infrações e pediu 80 indiciamentos. Entre eles, o do presidente da República, Jair Bolsonaro, e de ministros. As conclusões foram encaminhadas à Procuradoria-Geral da República, à Polícia Federal, ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao Tribunal Penal Internacional e a outros órgãos, para eventual responsabilização civil, criminal ou política dos envolvidos.
Origens das CPIs
No Brasil, o primeiro esboço formal do que viria a ser a futura comissão parlamentar de inquérito data da época do Império. Em 1867, em meio à Guerra do Paraguai, o Senado estudou a criação de um colegiado, nos moldes das atuais comissões de inquérito, para investigar supostas falhas do governo brasileiro no conflito militar com o país vizinho. No entanto, após acirrados debates no Palácio Conde dos Arcos — a sede do Senado imperial, no Rio de Janeiro —, os senadores decidiram enterrar a proposta, que pode ser considerada a precursora das CPIs no Brasil.
As CPIs foram previstas pela primeira vez na Constituição de 1934. Somente a Câmara dos Deputados, porém, podia criá-las. Em 1935, os Anais do Congresso Nacional registraram a primeira CPI da história. Instalada pelos deputados, chamava-se Comissão de Inquérito para Pesquisar as Condições de Vida dos Trabalhadores Urbanos e Agrícolas. Além dos parlamentares, era composta por representantes de categorias profissionais.
Essas primeiras comissões, no entanto, tiveram vida breve, por causa do Estado Novo. Em 1937, Getúlio Vargas impôs uma nova Constituição, e nela não estavam previstas as investigações parlamentares. Elas só voltaram com a Carta de 1946, agora podendo ser criadas tanto pelos deputados quanto pelos senadores. “A Câmara dos Deputados e o Senado Federal criarão comissões de inquérito sobre fato determinado, sempre que o requerer um terço dos seus membros”, determinava o texto, regulamentado em 1952 pela Lei 1.579 (que foi atualizada, em 2016, pela Lei 13.367).
Em 1965, já em plena ditadura militar, foi a vez de uma comissão para deliberar sobre as causas que deram lugar ao movimento separatista no estado do Acre. Após o fechamento do Congresso Nacional, em 1966, a Casa voltou a funcionar para aprovar, sem debates, a Constituição de 1967, que, agora, previa a realização de CPIs formadas por senadores e deputados, as Comissões Mistas (CPMIs), inexistentes até então. As CPIs também passaram a ter obrigatoriamente um tempo determinado para funcionar. Mas as novas regras demoraram muito para serem colocadas em prática.
Em 1968, uma CPI foi criada para apurar a evasão de cientistas e o incentivo às atividades de pesquisa científica e tecnológica. Em seguida, as investigações parlamentares ficam inibidas pelo endurecimento do regime militar, e só voltaram em 1973 — ainda assim, timidamente, com uma só comissão na Câmara, que investigava o tráfico de drogas no país.
A primeira CPI mista foi instalada em 1977, por solicitação do senador Nelson Carneiro (RJ), para examinar a situação da mulher em todos os setores de atividades:
“Há muito tempo alimento a intenção de promover amplas investigações e pesquisas sobre a verdadeira situação da mulher brasileira. Inúmeros motivos — feminismos e outros movimentos extravagantes à parte — conduzem-nos, inexoravelmente, a ponderar e a meditar sobre a quadra ou estágio de civilização a que chegamos, onde já não é possível ignorar a posição de inferioridade atribuída à mulher em todos os setores da atividade humana, situação essa que está refletida não somente no comportamento e no relacionamento das pessoas, através das convenções ou instituições mais duradouras (família; por exemplo), como no próprio ordenamento jurídico da sociedade”, escreveu o senador no pedido, argumentando que não era racional nem prudente manter essa discriminação.
As CPIs voltaram a tomar fôlego depois da Constituição de 1988, que valorizou a investigação parlamentar, dando a ela poderes próprios de autoridades judiciais, como a quebra de sigilos bancários, fiscais e telefônicos e até a decretação de prisão.
Ao todo, desde 1952, o Senado instalou 117 CPIs. E criou, com a Câmara, 70 CPIs mistas.
Efeitos das investigações
Existe uma percepção comum na sociedade de que as investigações parlamentares não surtem nenhum efeito. Uma frase do ex-senador Pedro Simon (RS) questiona o mito de que muitas CPIs acabem sem consequências:
— CPI dá em pizza? Normalmente não. O que acontece é que como a CPI é muito badalada, está sempre no jornal, e os parlamentares discutem […] a pessoa que assiste fica com a impressão de que vai todo mundo para a cadeia, e a CPI não pode colocar ninguém na cadeia. O que a CPI faz é alimentar os fatos, e provar os fatos — diz Simon no documentário Arquitetos do Poder, de 2010.
A lei diz que, terminando os trabalhos, a comissão deve encaminhar relatório com suas conclusões ao Ministério Público ou à Advocacia-Geral da União, entre outros órgãos, a fim de que promovam a responsabilidade civil e criminal dos infratores ou adotem outras medidas legais. A autoridade a quem for encaminhada a conclusão tem obrigação de informar as providências adotadas.
Mas mesmo que não levem ao afastamento, condenação e até prisão de investigados, as CPIs podem ter outros resultados positivos. Além de recomendar indiciamentos e propor ações para ampliar o combate às irregularidades, as comissões podem apresentar propostas legislativas ou sugerir aperfeiçoamentos em políticas públicas.
Algumas conquistas da sociedade podem ser creditadas ao trabalho de CPIs. Uma delas é o Programa Federal de Proteção à Testemunha, que só saiu do papel depois da CPI do Narcotráfico da Câmara, em 1999.
Outro exemplo de CPI que trouxe avanços, mesmo sem ter mudado leis ou indiciado alguém, foi a da Internacionalização da Amazônia, que, em 1991, deu um impulso para a criação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que atualmente monitora toda a região via satélite, sensores e radares.
Já a CPI da Mortalidade Materna, em 1996, mostrou que o governo precisava ter estatísticas do problema. No mesmo ano, o Ministério da Saúde implantou o sistema de monitoramento.
Em 1993, uma CPMI teve grande repercussão: a dos Anões do Orçamento. A comissão apontou que parlamentares recebiam propina para incluir emendas no Orçamento e beneficiar empresas fantasmas. A comissão acusou também o envolvimento de ministros e altos funcionários. O relatório propôs a cassação de 18 parlamentares — desses, 6 acabaram cassados, 4 renunciaram para escapar de inquérito e 8 foram absolvidos ou tiveram o processo arquivado.
Presidente da CPI do Orçamento, o senador Jarbas Passarinho (PA) avaliou, anos depois, que o Brasil ganhou com os trabalhos da comissão, porque ela abriu as portas para o combate à impunidade:
— No momento em que desencadeou isso no Orçamento, veja o que aconteceu depois, quantos deputados perderam o mandato, por investigações feitas. Isso não era comum. Ao contrário, era extremamente incomum. Então, para o Brasil foi bom. Porque representa que o parlamentar pode também ser cobrado por sua própria instituição quando é desonesto — afirmou Passarinho, em 2012.

 

Redação

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